Friday, January 06, 2006

Saraband - Ingmar Bergman

No topo da minha lista surge um filme estreado internacionalmente em 2003: Saraband. Este filme de Ingmar Bergman conquistou-me imediatamente. Apesar de ter estreado em Janeiro, não houve um único filme que tivesse derrubado da posição cimeira que ocupa na minha lista. O mais surpreendente é que eu nem sou um admirador incondicional de Ingmar Bergman. Aprecio vários dos seus filmes – especialmente Fanny e Alexandre – mas nunca foi um dos meus realizadores de eleição. Assim, é uma surpresa para mim próprio, o destaque deste filme na minha lista.

Quando um filho afirma desejar que o pai morra de uma doença prolongada e dolorosa de quem é a culpa? De onde nasce tamanho ódio? Haverá uma resposta simples a estas questões? Henrik (Börje Ahlstedt) revela estes pensamentos tenebrosos acerca do pai a Marianne (Liv Ullmann), divorciada deste há mais de trinta anos, numa igreja. Ela sabe que o antigo companheiro não era uma pessoa fácil, mas o modo como olha para Henrik diz tudo: ela não estava preparada para uma confissão de ódio tão violenta. Antes e depois das palavras amargas e ressentidas de Henrik o filme de Bergman passa por dois momentos sublimes. Marianne entra na igreja ao som de Bach e o cenário transporta-nos para um espaço paradisíaco de absoluta paz. Pouco depois, descobrimos que Henrik está a ensaiar uma peça de Bach, num órgão com uma sonoridade excelente. Ao longo do filme este recurso vai ser utilizado mais vezes. A música para Bergman está incluída na vida, sendo mais do que uma mera banda sonora. Antes de sair da Igreja, Marianne olha para uma representação do Menino Jesus e do seu Pai: o segundo momento de contemplação. A dependência do primeiro em relação ao segundo e as barbas deste último remetem para Henrik e para o seu pai, Johan (Erland Josephson). A paz daquele retábulo e a música sagrada de Bach contrastam com a péssima relação entre ambos.

Esta sequência e no fundo o filme no seu todo tratam desse enigma que é a arte e a beleza não serem suficientes para acabar com os horrores do mundo. Se cada imagem de Nuit et Bruillard de Alain Resnais nos questiona como foi possível ter sido um dos povos que mais contribuiu para a elevada matriz cultural europeia a causa de tanta destruição e carnificina, também aqui Bergman exibe a extrema fragilidade da arte. Num Universo repleto de raiva e rancor a arte parece ser a única porta para o nosso espírito sair. O acesso a esta é contudo limitado no tempo e no espaço e esse é o nosso inferno.

Num filme onde cada uma das cinco personagens vive rodeada de cultura, essa fruição estética não os torna grandiosos, nem melhores. Um bom exemplo disso ocorre quando Henrik vem pedir dinheiro emprestado ao pai para poder comprar um violoncelo melhor para a sua filha Karin (Julia Dufvenius). Johan está na sua biblioteca onde os livros são tantos que alguns estão empilhados no chão. Mas este cenário cultural assiste impotente ao diálogo amargurado entre os dois. O espectador enquanto assiste à disputa entre eles tenta descortinar quem tem razão. Na verdade como o filme irá revelar nenhum deles a têm. Ambos são vítimas dos seus egoísmos.

Na realidade só as mulheres parecem querer mudar esta aparente contradição entre a arte que se consome e as relações humanas que desenvolvemos. Os homens não se conseguem libertar dos seus demónios, e afundam-se com eles durante o filme. A fotografia que mostra o corpo nu de Henrik à porta de casa depois da sua tentativa de suicídio assusta. Ele deixou de existir depois da morte da sua esposa Anne. São elas que detém a iniciativa. É Marianne quem se dirige ao espectador, é devido à sua iniciativa que o encontro com Johan ocorre. Karin é o centro de atenção do seu pai e do seu avô. E mesmo Anne, já falecida, é recordada por todos, principalmente os homens. Durante o filme paira a filha de Marianne e Johan que vive num asilo. Vai também ser a filha deles, Martha (Gunnel Fred), a chave deste filme, como se verá na última sequência.

Num filme que assume um desespero atroz na sequência em que Johan grita e chora no corredor como um louco, devido ao medo da solidão que a visita da sua esposa lhe vem recordar, temos para contrapor os relatos da relação extraordinária entre o filho de Johan e da sua esposa Anne. De certo modo o sucesso da afinidade deste casal era fonte de interrogações para todos. Johan confessa a Marianne que nunca entendeu como o seu desastrado filho conseguiu uma relação perfeita com uma mulher. Se profissionalmente Henrik não atinge a genialidade do pai, na relação com a sua esposa suplantou-o. Se uns criam obras de arte, outros fazem da própria vida a sua obra de arte. Infelizmente a arte depois de criada pode subsistir durante séculos e mesmo quando é destruída pode ainda perdurar na memória dos homens. Uma relação humana é infelizmente bastante precária e por isso a vida tão frágil. Perfeita num dado momento e trágica pouco depois. Os problemas de Henrik com a filha e o seu posterior suicídio tornam este filme ainda mais negro. Perante o fracasso do único elemento capaz de estabelecer uma relacão o que terá Bergman para oferecer ao espectador?

Martha! Durante anos a visita a que Marianne lhe fazia era simplesmente um sacrifício e mesmo uma tortura. Os sonhos grandiosos que os pais imaginam para os seus filhos estavam no caso de Martha completamente enterrados. Martha simplesmente não comunicava com as visitas e a visita era apenas circunstancial.

No fim do filme Marianne vai mais uma vez visitar a filha ao hospício. Esta visita é contudo diferente de todas aquelas que efectuou ao longo dos anos. Pela primeira vez cuida verdadeiramente dela: acaricia-a com as pontas dos dedos e tira-lhe os óculos. Perante um gesto inesperado a filha assusta-se. Até então Martha era para ela apenas um fardo e uma árvore que nunca daria um fruto. Mas naquela visita, a mãe esquece-se de todos os sonhos que teve para a sua filha e não exige nada em troca. Finalmente aceita as limitações da sua filha. E é então que numa espécie de milagre a sua filha abre os olhos. A comunicação entre mãe e filha tinha acontecido. Do modo mais subtil possível Bergman dá ao espectador uma lição magistral de humanidade.

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